segunda-feira, 27 de dezembro de 2010

Albert Camus: "O pernil e o nada"

[Em diálogo com a mulher, o sr. Vigne justifica seu abandono da religião e diz que tudo equivale a nada.
Diante da ameaça de ficar sem jantar, faz pastiche da filosofia existencialista sobre a constituição da subjetividade a partir do olhar do outro, após afirmar que sua mulher não é um "ser-aí" -tradução de "dasein", de Heidegger, incorporado por Sartre]

SRA. VIGNE (distraída) - Quais são, senhor Vigne, as ridículas superstições que diz abandonar?
SR. VIGNE - A religião, minha mulher.
SRA. VIGNE - Ah, é! (sobressaltando-se) Então é a religião?
SR. VIGNE - Sim, minha mulher, tenho o prazer de lhe informar que até o presente momento vivemos na ignorância e no erro. Agora, ao contrário, acabo de aprender a verdade: que não há verdade superior e que não existe mesmo verdade alguma, que tudo é acaso, que pode haver fumaça sem fogo e que, enfim, tudo é nada vezes nada.
SRA. VIGNE - Ufa, se não sou eu quem está ouvindo errado, é você que está ensandecido. E, no lugar de dissertar como um arcebispo, seria melhor tomar conta de seu pequeno caixeiro, que está a um passo de explodir após ter se entupido com seus bombons de marshmallow.
SR. VIGNE - Isso vai lhe ensinar, minha mulher. É totalmente indiferente que ele coma marshmallows, que exploda ou que não exploda.
SRA. VIGNE - Agora entendi! É mais um de seus ataques de mau humor. Você terá febre de noite e vai tomar um purgante amanhã, como de hábito.
SR. VIGNE - Pare de ser vulgar, senhora, e não atribua ao mau humor aquilo que advém do puro e nobre conhecimento.
SRA. VIGNE - Eis, com efeito, uma nova ciência, que o levará longe. Bem, seja como quiser, e, já que nada serve para nada, você não vai jantar hoje, ao passo que eu continuarei a chafurdar na ignorância e no erro enquanto como sozinha aquele gordo pernil que Deus -sim, Deus, ele mesmo- nos enviou nessa manhã.
SR. VIGNE - Acontece, minha querida, que você não é um "ser-aí" e por isso é necessário que eu jante bem ainda que nada faça sentido.
SRA. VIGNE - Isso está ficando divertido, meu tresloucado marido, e terei prazer se me explicar essa nova maravilha.
SR. VIGNE - Quer dizer, eu... Enfim, é pelo seu bem que eu devo jantar.
SRA. VIGNE - Pelo meu bem?
SR. VIGNE - Sem dúvida, pois... (ele hesita, depois fala rápido, como um iluminado) ...A partir daquilo que acabo de aprender, eu não sou nada sem você e devo me tornar aquilo que sou ajudando-a a ser aquilo que você é, donde se conclui que, sendo aquilo que sou, devo fazer aquilo que você faz e que, sendo aquilo que você é, você deve me deixar fazer aquilo que é preciso fazer para que você e eu sejamos aquilo que nós somos. Eis a razão pela qual eu devo jantar. Está claro?
SRA. VIGNE - Tão claro que vou agora mesmo ao hospício pedir socorro urgente.

Trecho do "Improviso dos Filósofos", tradução de Manuel da Costa Pinto.

terça-feira, 21 de dezembro de 2010

Uma história sobre a liberdade


Num opúsculo, Gramática da liberdade, um filósofo contemporâneo nos convida a meditar sobre fatos como estes:

“Um homem foi esmagado pelo comboio 131 na linha 3 da estação do metropolitano de Saint-Lazare... Esse homem tinha 29 anos. Ontem, Bernardo andava em uma das extremidades da plataforma, de um lado para outro; afastou-se dos passageiros, inclinou-se para olhar as luzes da máquina e foi lançado sobre os trilhos, de pés juntos e braços ao longo do corpo, como mergulhador. Com suas pernas cortadas, o rosto queimado, morreu imediatamente. Ele não mais dobrará a esquina da Rua Ordener, onde, ainda criança, aprendera os jogos de bolas de gude e de gato empoleirado; não mais subirá a escada estreita onde o mau cheiro de frituras e da latrina; não lerá, apoiado pelo fogão a gás, sob a fresta da cozinha os anúncios de emprego do Paristein libéré. Ele havia aprendido a profissão paterna: alfaiate de meia confecção; há cinco meses estava desempregado: pequenos anúncios, escadas, recusas duras... e, depois, suas roupas tornaram de tal forma andrajosas que não ousava mais sair.

(Algum de nós já ficou dias inteiros deitados na cama com a impressão de não ter mais aspecto de homem, num mundo que recusa seu trabalho?)

Bernardo ouvia as panelas de sua mãe, do outro lado do tabique, ele vive à custa da mãe; saiu ainda uma vez; na fábrica, recusaram-no para servente porque era muito fraco; no escritório, um chefe de serviço olhou hostilmente seus sapatos furados: não há vaga. Às sete horas da manhã do dia seguinte, ele se insinuou para a entrada do metrô de Saint-Lazare, na hora de volta ao trabalho. Todos estão presos ao relógio, preocupados com o trabalho. Ele está livre. É livre, pode ir ao museu ou ver as flores dos parques, é livre para pensar a física de Einstein ou na Imaculada Conceição. No momento ele se sente livre, sobretudo para escolher entre o bico de gás ou os carros do metrô.

São sete horas da manhã. Começa um dia de homem livre: Um homem foi esmagado pela composição 131. Bernardo, um homem livre entre os homens livres, foi esmagado por essa liberdade.

Isso revela um trágico brilho, a ambigüidade dessa palavra liberdade. O desempregado é livre, visto que não está sujeito aos horários da fábrica ou do escritório nem pelo peso da tarefa cotidiana. Ele é escravo, porque está sujeito à opressão da miséria. É livre para procurar o trabalho que os empregadores são livres para lhe recusar. E, em conseqüência, ele nem é mais livre para viver.

Huisman, Denis e Vergez, André. Curso moderno de filosofia: introdução à filosofia das ciências. Trad. Lélia de Almeida Gonzalez. 5a. ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1974. p. 317.