sábado, 15 de maio de 2010

Donana


(Uma história verídica que em breve será - por insistência da Alyria - uma das coisas postas num livro meu qualquer...)


Ela gostava de que dispuséssemos de um título honroso antecedendo o seu nome.
Tínhamos de chamá-la de Dona.
O tempo já havia apagado suas feições de moça,
mas também não era uma dama.

Ela não é minha dona - eu pensava - e nem senhora das minhas vontades.
Por que devo chamá-la assim?
No entanto, sendo ela proprietária do imóvel onde morávamos,
era Dona sim:

Dona do lugar,
dos móveis,
do valor do aluguel,
da organização do lixo
e dona da disposição do seu latifúndio moderno.

Tínhamos deferência e respeito por sua trajetória de vida.
O idoso neste país é um alimento lançado nos cantos do mundo como um produto que apodrecido é escurraçado até da fome dos cães.

Tinha feridas visíveis e cada uma delas era revelada com seu imenso prazer em conversar longamente.
Em cada conversa, uma, duas, três feridas abertas e trapos jogados no chão.

Chorava a infância feliz e salivava os pães caseiros.
Queixava-se das dores do pé,
da violência conjugal e dos inquilinos inadimplentes.

Contava-nos de Portugal e de Moçambique.
Muitos móveis que utilizamos eram mais velhos que nós dois juntos.

Sempre acreditei que revirar o lixo é a melhor forma de conhecer alguém.
A Dona descobriu que eu era professor porque eu jogava os rascunhos das minhas provas e logo depois começou a tratar-me com menos desconfiança.
Algumas vezes joguei nosso lixo nas lixeiras da esquina.

Certo dia, vimos as garrafas do iogurte que compramos em sua dependência alguns dias depois de termos consumido seu conteúdo.
Ela tinha desejo pelo nexo que o lixo trazia e eu e minha Alyria,
exorcizamos as sensações físicas que os ratos sentem ao devorar o que o ser humano descarta.

Costurava bem.
Confeccionava suas próprias roupas e fazia compras uma vez por mês.
Comia coisas estranhas.
Enxergava mal e dormia com a TV ligada.
Muito católica, disfarçava suas frustrações na oração e reclamava não ir mais tanto à missa por conta da ferida no pé.

Vistos de perto nunca somos a imagem do primeiro olhar e com a convivência,
afastam-se as sombras e a neblina que impede de ver o que vem de longe.

Ela era assim, pra todos verem,
escancarada,
aberta,
desavergonhada dos momentos que a vida lhe deu.

Somos tão misturados de tudo que as vezes é impossível acreditar que é possível fazer disso uma massa homogênea.
Somos todos da mesma humanidade,
angustiosamente incompreensíveis perante a atitude interior de querer compreender tudo.